quinta-feira, 16 de julho de 2009

o meu fado

(escrevi este texto para o jornal do Lux, não foi publicado)

Um tipo como eu sai muitas vezes à noite somente para procurar histórias. Esquecendo o seu metro e 64 de altura, perde-se em encruzilhadas. Digo encruzilhadas porque ter baixa estatura neste mundo, significa presa fácil para os que procuram confrontos de força. Mas um tipo como eu, encontrou no tempo sensibilidade suficiente para enfrentar caminhos pouco iluminados. E não hesita, mesmo que as encruzilhadas sejam duvidosas cheias de poças, lama e neons fundidos.

Desde o primeiro contacto que tive com a pista de dança que sinto no olhar dos “clubbers” um carinho especial. Confesso, nunca o suportei. Muitos passavam-me a mão pela cabeça e faziam-no por causa do meu metro sessenta e tal de altura, faziam-no porque aos “gigantes” não chegavam a “festas” daquele género.
A minha baixa estatura instigou desde sempre um contacto fácil, e durante anos lutei contra essa evidência provocada pelas aparências; ensaiei atitudes problemáticas, escondi-me para que não fosse possível uma aproximação, usei mesmo chapéus para que não me tocassem na cabeça.
Mais tarde percebi que o metro sessenta e pouco associado a boas palavras poderia ser considerado “talento” na hierarquia nocturna. Não representando qualquer ameaça para fisionomistas de discoteca e os seus seguranças, foram-me abertas portas de lugares imperdíveis. Com o tempo juntei à minha altura uma retórica inabalável, evitando desta forma qualquer possibilidade de negação. Reproduzi o esquema vezes sem fim, certifiquei-me da sua eficácia, lembrei-me até de montar um negócio para aconselhar amigos barrados sucessivamente na arte festiva. Mas o meu discurso não era matemático, surgia apenas de uma atracção natural pela dança..
Num passeio nocturno muito recente, perto do Cais do Sodré, descobri que a minha técnica de persuasão nocturna começou a desbotar para outros momentos de vida. Percebi isso quando no outro dia os objectos que costumo guardar nos bolsos (carteira, moedas, notas, telemóvel, ipod), foram parar às mãos de quatro desconhecidos.
Fui assaltado, só que foi um assalto diferente .
Os ladrões depois de me terem cercado, encontraram no meu discurso nocturno palavras fraternais, e a meio da agressão um deles proclamou: “Este rapaz não pode ser assaltado”.
A espiral foi então invertida, e os objectos que me tinham sido roubados minutos antes voltaram para mim.
A retórica que usei durante os gestos bruscos, passou-me para o lado do inimigo; usei a mesma técnica que uso há anos para entrar nas discotecas. Enquanto me assaltavam sorri. Fiz o que me pediram dando a minha opinião, procurei segundos de cumplicidade e nunca tentei armar-me em esperto. A partir desse momento os ladrões trataram-me com respeito. Depois de aceitar os meus bens (com alguma cerimónia confesso), e ouvir os ladrões dizer “segue em paz”, tentei perceber a lógica daquele momento.
Na minha cabeça desfilaram imagens, pensei na vida a imitar o cinema.
Lembrei-me do que se diz, “o mal nunca se transforma em bem”, e imaginei más pessoas a salvar o mundo e salvadores a destruírem-no. Minutos mais tarde pus a hipótese de os ladrões terem percebido que eu era artista: automaticamente reduzido a um eterno roubado.
Uma hora depois comecei a sentir-me como eles, um pouco bandido... Andava à deriva a roubar ideias nos gestos dos desconhecidos.
Nas ruas vazias, procuram-se milagres. No caso dos ladrões, um milagre encontra-se numa carteira alheia.
No meu caso o milagre foi ser assaltado, porque na minha linguagem reconheceram palavras de (sobre)vivência.

Vejam este video

Alex Beaupain é o autor da banda sonora do filme musical de Christophe Honoré, As Canções de Amor. A história que se conta no filme é a sua. Onde começa a ficção e acaba a realidade, ninguém sabe ao certo, mas aquelas canções falam dele e de um acontecimento que mudou a sua vida; a morte repentina da sua namorada. As canções do filme pertenciam, antes de serem história de cinema, ao seu primeiro álbum, Garçon d’Honneur, lançado no mercado francês em 2005. Foi um álbum que passou completamente despercebido. Beaupain chamava a atenção somente quando compunha bandas sonoras para os filmes de Honoré.

Primeiro houve 17 Fois Cécile Cassard, filme com Béatrice Dale acompanhado de uma banda sonora electro-rock excelente. Depois Em Paris com inúmeras pistas de jazz e um tema que evocava os musicais de Jacques Demy,Avant la Haine, interpretado por Romain Duris e Joana Preiss. Alex Beaupain, 35 anos, voz frágil que não esconde imperfeições, viu o seu talento ser reconhecido por todos (público e crítica) com As Canções de Amor. As canções do filme tornaram-se objecto de culto em França. Depois desse sucesso lançou em 2008 um segundo álbum de originais, 33Tours, nele fala menos de luto e mais de sexo. Aos poucos a sua carreira a solo impõe-se. Alex Beaupain de passagem por Lisboa falou-nos da sua relação com a música.


Ontem levámos-te a ouvir fado e dizias a brincar que estávamos a humilhar-te. Eram cantores de voz os que ali cantavam e tu cantas num registo completamente diferente. Tens uma voz frágil e as tuas as falhas vocais surgem não como um defeito mas como um atributo. É um estilo muito próprio dos franceses, gostava que me falasses dessa “linhagem” que existe na música pop francesa e à qual tu pertences...

É muito francês, tens razão. Em França isso nasceu com o Serge Gainsbourg, ele não era aquilo a que chamamos um “cantor de voz”. Depois nos anos 80 apareceu o Etienne Daho, todos diziam que cantava mal. O que era interessante era aquilo que ele contava nos textos das canções, e a maneira como ele os cantava. Era vocalmente frágil, não fazia uma performance vocal. Os franceses não são performers como os americanos. Eu sempre me comovi mais com as pessoas que cantavam com emoção. Por isso faço cantar actores, vocalmente não são perfeitos, falham no ritmo, na afinação, mas encarnam o texto. Nos meus textos conto coisas íntimas e os defeitos são interessantes porque têm emoção. Normalmente gosto dos cantores que cantam mal. A Françoise Hardy ou Alain Souchon escrevem os textos deles e vivem-nos, é comovente. Eu também faço com o que tenho.


E quando é que percebeste que podias cantar? Que tinhas uma voz bonita?

Eu nunca tive muito atento a isso, porque antes de mim em França apareceram pessoas com um discurso do género: “não faz mal, podemos cantar mal que não há problema”. Tive dificuldades com a minha voz ao princípio como quando se é pequeno e não se reconhece a nossa voz gravada. Comecei então a utilizar o charme e a fragilidade. Na minha família ouvia-se muita música, eu tocava piano e andava num coro. Na adolescência abandonei o piano porque era mais interessante fumar cigarros e beber cervejas. Percebi depois que o piano não era servia só para tocar Chopin, que podia escrever canções com ele. E como adorava alguns cantores... Tornei-me cantor...


Os teus ídolos eram cantores por isso querias ser cantor?

Sim, comecei a escrever música por causa dos meus cantores preferidos. Comecei a escrever canções com 18 anos, mas só aos 26 achei que escrevia boas canções.


Quem foram as primeiras pessoas a quem mostras-te os teus textos?

(risos) É agora, vamos chegar a ele [refere-se ao realizador Christophe Honoré].

A primeira pessoa a quem mostrei alguma coisa foi à minha namorada. Eu tinha vergonha de ser cantor, achava difícil dizer as pessoas que escrevia canções.

A minha namorada só ouvia as minhas canções porque era minha namorada, depois a outra pessoa a quem as mostrei foi ao Christophe...


Honoré? [Risos]

Honoré claro, mas porque ele tinha começado a fazer coisas, tinha publicado um livro para crianças e era a primeira pessoa que à minha volta me provava que era possível viver como artista. Disse-lhe que escrevia canções e ele imediatamente disse: “Sábado vamos jantar na tua casa, tu tens um piano, vais fazer um concerto para nós”. Toquei três canções.


Não tinhas disciplina, era isso? Ele ensinou-te a ter disciplina?

Não, ele obrigou-me... disse-me que eu ia ser cantor. Foi ele quem decidiu. Começou a dizer-me como íamos fazer as coisas... Começamos a escrever juntos e eu rapidamente achei que os textos dele não eram muito bons... Não é o que ele faz de melhor, tenho umas 12 canções escritas pelo Christophe. Ele acha que depois de morrer eu vou lançar um álbum com essas canções e que será o meu melhor álbum, eu não tenho tanta certeza. É uma piada recorrente entre nós. No entanto foi ele quem me disse que era possível ser cantor, e que um dia ia ter um contrato com uma editora.


Tu começas em 2001 como compositor da banda sonora do primeiro filme do Christophe Honoré [17 Fois Cecile Cassard]. Como é que se escreve música para uma sequência de cinema?

Eu não me considero um compositor de bandas sonoras. Trabalho praticamente só com o Christophe. O primeiro filme dele foi também o meu primeiro filme como compositor. Até esse projecto eu vivia como cantor, achava que era esse o meu talento. E mesmo agora que já compus várias bandas sonoras, continuo sem saber como se faz. A última que fiz foi com uma orquestra no próximo filme de Honoré (Non ma fille, tu n’iras pas dancer). Podia dizer que já sei como se faz... mas não. Eu e o Christophe temos uma maneira de trabalhar muito especial, baseamo-nos nas nossas sensações relativamente à história que se conta, em vez de fazer coisas precisas a partir de uma imagem. É sempre muito instintivo, quando acabo de fazer a música para um filme dele não sei como a fiz.


Dizias numa entrevista que escrevias canções demasiado pessoais, e que por isso o teu primeiro álbum não teve sucesso, Depois o Christophe Honoré utilizou as mesmas canções desse álbum no filme As Canções de Amor e foi o que se sabe... Um êxito...

Sim, o filme teve um impacto forte... Foi visto. Era um bom filme. O meu primeiro álbum não teve sucesso, na altura pensei que com um flop daqueles não ia conseguir fazer outro. Pensei mesmo que tinha de fazer outra coisa na vida. Achei que as histórias que contava nas minhas canções era chatas...Afinal falavam da minha namorada que tinha morrido e eu consigo perceber que isso aborreça as pessoas. Só que eu não sei fazer canções desligadas de mim. As canções pessoais são as únicas que consigo escrever, e graças ao filme percebi que comoviam as pessoas, não eram um erro. O filme libertou-me, deu-me a possibilidade de continuar no meu caminho intimista.


Quando o Christophe te propôs adaptar as tuas canções no filme, disseste logo que sim?

Temos uma relação especial, ele pode pedir-me tudo. É um rapaz inteligente, que respeito artisticamente. Nas minhas canções falo de luto e de um sentimento de perda, o Christophe já tinha falado desse mesmo sentimento em alguns livros, feito alusões em alguns filmes. Ambos gostávamos da ideia de fazer um musical. Ele propôs-me directamente agarrarmos nas minhas canções e contarmos a minha história, a mesma história que eu contava nas minhas canções. É óbvio que se fosse outra pessoa, não teria aceite. Mas ele viveu aquela morte ao meu lado. A ideia não era fazer uma terapia ou uma homenagem, a ideia era fazer um filme bonito. Pensei durante um dia e aceitei a proposta.


Qual foi a sensação de ouvir as tuas canções noutras vozes?

Foi bom, o filme deu uma segunda oportunidade a canções que não tinha tido sucesso nenhum. Os actores encarnavam uma personagem, tinham uma distância relativamente à história. Não eram como eu, que quando as cantava falava de mim. Enquanto trabalhávamos em estúdio houve um momento estranho com o Louis Garrel, ele consegue imitar muito bem as pessoas... As vezes ouvíamos as gravações e não sabíamos se era a voz dele ou a minha. Era estranho porque estávamos a falar de mim. Tentei não pensar muito nisso, como fizemos o filme com pouco dinheiro, não tive tempo para pensar. O filme permitiu-me continuar a trabalhar, se não tivesse tido sucesso, tinha parado. De repente as pessoas sabiam quem eu era, vinham aos concertos e sabiam as letras das minhas canções... Isso é tão agradável.


Que sentimentos guiam os teus textos?

No início, o luto e a ruptura. No segundo álbum ainda exploro essa ideia de luto, mas tentei também fazer canções sexuais. Agora vou tentar fazer um álbum que fale de sexo. Aos cantores masculinos em França é-lhes difícil falar de sexo. Quando o fazem ou é de uma forma cómica ou agressiva. Eu gostava de escrever um álbum com textos sexuais, sem pudor.


Fazes música Pop e fala-se cada vez menos francês no mundo... Ao cantar na tua língua não estás a impor limites à tua música?

Isso é uma verdadeira questão para muitos músicos em França. Neste momento assiste-se a um regresso do folk e a maior parte desses grupos folk em França cantam em inglês. Eu não me preocupo com isso, para mim ser conhecido no meu bairro é suficiente. É um verdadeiro desafio para mim escrever belas canções em francês, encontrar uma boa fórmula para escrever nesta língua complicada e que supostamente não soa bem como o inglês. Como é que se consegue que uma canção seja elegante, bem escrita e com ritmo? Pode parecer pretensioso, mas na minha geração não há muita gente que o faça bem, é por isso um desafio.




O encontro com Anna Mouglalis


É uma das actrizes de cinema mais respeitadas em França. É também um ícone de moda, desde os 24 anos de idade que é embaixadora da marca Chanel. Agora aos 30, o realizador Jan Kounen fez-lhe uma proposta irresistível: dar vida à estilista que mudou a silhueta feminina. Foi assim que Anna Mouglalis se transformou em Coco Chanel.

Em Paris, a esplanada do célebre café “Les Deux Magots” no bairro de St-Germain fica silenciosa com a chegada da actriz Anna Mouglalis. As pessoas observam-na, segredam o seu nome, alegram-se.

Silhueta esguia, voz rouca e olhar felino são qualidades que transporta consigo. Não passam despercebidas, seja na vida real ou na ficção.A maneira natural e descontraída com que se apresenta torna a sua beleza estonteante, é por isso imediato o contraste com as imagens que a imprensa costuma veicular de si. Quando se observa a sua silhueta com atenção, o símbolo Chanel aparece discreto nas roupas que veste. É assim que denuncia a condição de embaixadora de uma das maiores marcas de luxo do mundo. A sua aliança com Chanel começou em 2002, “de forma repentina e inesperada”, comentava-se quando assinou um contrato que se dizia milionário. Ela era apenas uma jovem de 24 anos, revelada por um filme de Claude Chabrol, “Merci pour Le Chocolat”. Foi o encontro com Karl Lagerfeld que despoletou tudo. Ele não poupa elogios quando se refere à actriz francesa: “É divina, pouco convencional, detentora de uma beleza intemporal. A palavra estilo é indissociável da sua figura”. Nos anos que seguiram esta aliança com Chanel, a actriz protagonizou mais de 13 filmes. As suas escolhas cinematográficas eram arriscadas, no cinema era uma figura do underground, nas páginas das revistas era uma estrela. Foram as campanhas publicitárias para os perfumes Allure e Allure Sensuelle que a tornaram famosa.Durante algum tempo Anna Mouglalis foi mesmo confundida com as modelos que tentam reconversão na sétima arte. Mas ela era actriz de corpo e alma.Mouglalis diz nunca se ter preocupado com as projecções dos outros. “O olhar das pessoas afastou-me da arte dramática, mas eu nunca a deixei. Sim, foi a Chanel que me tornou conhecida, e agora é graças a Coco Chanel, que tenho um papel num filme comercial, um filme diferente de todos os que fiz até hoje. Isto sim, é uma história bonita.” A actriz não esconde o prazer na frase que acaba de pronunciar. Pois alinha o seu percurso de forma credível. Nada acontece por acaso em tão brilhante figura. E todos os acasos podem ser aproveitados, transformados em substância de combustão.Mouglalis nunca questionou o seu talento de actriz, pode duvidar de tudo, menos do seu trabalho. As portas que se fecharam por transportar consigo um universo de glamour, acabaram por abrir outras.A marca Chanel deu-lhe a conhecer um mundo que desconhecia: “Quando comecei a trabalhar na moda, pensei ter de lidar com pessoas de uma futilidade extrema, depois conheci o Karl (Lagerfeld) e tive uma visão completamente diferente. Ele é o século dele, inspira-se em tudo. E a moda é magnífica quando se inspira, seja numa época, seja noutras artes”.Enquanto fala os seus gestos acariciam o vazio do espaço. A actriz decide então programar o despertador do seu telefone, não quer olhar para o relógio enquanto conta a experiência que viveu ao filmar “Coco Chanel e Igor Stravinsky”, de Jan Kounen. Esta é a primeira vez que fala do filme, as filmagens acabaram há pouco tempo, mas Paris já tem cartazes espalhados a anunciar aquela que será uma das longas-metragens mais aguardadas no festival de Cannes.

Mouglalis pôs uma condição para podermos realizar esta entrevista: “Preciso de estar num sítio onde me deixem fumar”. Este vício torna-se relevante pois junta à sua silhueta um tique próprio a Coco Chanel, a personagem que acabou de encarnar. Ambas parecem ter em comum a aura que deu nome ao perfume, “Allure”, podemos chamar-lhe porte ou mesmo raça. Paul Morand um dos inúmeros escritores que escreveu sobre Coco Chanel dizia que o porte na atitude da estilista existia em todos os sentidos do termo. Era porte físico e moral. Isso é também flagrante na mulher que se encontra à minha frente.O físico de Mouglalis foi ligeiramente modificado, os longos cabelos castanhos estão agora curtos e pretos, são restos dos quatro meses em que viveu outra vida. Na sua maneira de estar sente-se o abandono de quem foi absorvido por outra realidade. A actriz parece ter esgotado um desejo de sedução, próprio aos actores, durante o tempo em que se entregou à sua personagem. Quando descreve Chanel, embala-se, ainda tem um pouco dela dentro de si.Nos anos 20 do século passado, a estilista transgrediu os códigos sociais – os códigos sexistas. “Coco foi alguém que conseguiu construir um império graças ao dinheiro que ganhou. Ela mudou a projecção que se tinha das mulheres daquela época, incarnou a mulher moderna”. E é assim que Mouglalis decide coroar Chanel com um elogio inesperado: “Ela era uma punk”.Na boca da actriz, “punk” é revolução, é resistir ao sistema, é fazer frente ao julgamento alheio, é inovar sem nunca abdicar da elegância. “Eu geralmente pergunto onde se situa o meu amor e admiração pela personagem que interpreto. Tenho de a conseguir amar, não a posso julgar. Chanel foi uma pessoa muito controversa, admirável, mas muito dura. O que a representa melhor é o preto e o branco, ela era assim.”

Coco Chanel restituiu a liberdade ao corpo das mulheres, livrando-as dos espartilhos e dos folhos exagerados. Quando criou o mítico perfume Nº 5, foi a primeira a juntar vários odores numa só fragrância. Tentou criar algo que resistisse ao tempo, o perfume tornou-se um clássico.Coco Chanel e Igor Stravinsky” não é um filme biográfico comum, pois centra-se somente num episódio da sua vida. A acção concentra-se na relação amorosa que a estilista teve no início do século passado com o compositor russo Igor Stravinsky (interpretado por Mads Mikkelsen).Em 1913, Chanel assistia à estreia da “Sagração da Primavera”, de Stravinsky. Ela ficara fascinada, mas o público reagiu ao bailado de outra maneira, “as pessoas andaram à luta, a polícia teve de intervir, aquilo foi um escândalo e isso transportou-a completamente”, conta Mouglalis .Passados sete anos Chanel voltou a cruzar-se com Stravinsky. Ela era rica, ele estava exilado em Paris por causa da revolução russa. Casado e com filhos, Stravinsky era considerado um génio, mas vivia sem recursos.Foi Chanel que o sustentou durante alguns anos, e assim convidou o compositor a viver em sua casa. Mesmo que assombrados pela presença da mulher de Stravinsky, ambos seriam consumidos por uma atracção eléctrica, acabariam por se tornar amantes. “Chanel vinha de um meio modesto, foi graças ao seu trabalho e ao dinheiro que ganhou que teve acesso ao mundo artístico. Ela admirava o talento de Stravinsky, ao possuí-lo encontrava maneira para que ele a admirasse também”. Mouglalis diz que através deste momento se pode contar toda a história de Chanel: “Ela sacrificou a sua vida afectiva pela vida profissional; neste filme conta-se a sua vida através de uma paixão. É uma faceta sua que não se conhece. Isso deu-nos muita liberdade”. O filme segue depois a trajectória de cada um deles, foi uma relação que não durou muito tempo, mas a estilista e o compositor nunca se perderam de vista. O azar fez que ambos morressem em 1971.

Anna Mouglalis decide mostrar algumas fotografias que tem no telefone, está caracterizada de Coco Chanel já velha. As fotografias são cruas, parecem reais. A actriz diz que sentiu vertigens quando se viu assim, “ o cinema comercial permite isto mesmo, atingir a maravilha”.De Coco Chanel conhece-se uma espécie de mitologia. A juventude dela difere de biografia para biografia, Chanel contava sempre versões diferentes da sua vida, nunca assumiu as suas origens modestas. A actriz acha que isso torna a sua personagem ainda mais heróica, e não suporta que se desmistifique tudo em prol da verdade, “é bom que façam investigações, mas quando se trata de artistas que tentaram inventar um mundo?”Acaba por rematar que a vida de Chanel foi uma obra só por si.Mouglalis no início de sua carreira admitiu várias vezes uma procura parecida a esta. A sua vida também podia ser uma história. Ela projectava no futuro um destino trágico ou magnífico. Esta intensidade que reivindicava punha a imprensa ao rubro. A beleza, o sucesso e esse furor de vida ajudaram em muito a construção da sua personagem pública. Actualmente já não pensa desta forma, mudou quando teve a sua filha. Ao ser mãe descobriu que o quotidiano também pode ser extraordinário, o excesso pode estar em tudo o que se faz.A liberdade a que Anna Mouglalis aspira é aquela que se alimenta de um desejo louco e consegue alcançar os sonhos pretendidos.“Coco Chanel pôs a liberdade dela na independência, e eu trabalhei desde cedo para isso. A nossa sociedade é muito psicológica, tenta que nas nossas vidas tudo se defina a partir da história dos nossos pais. Mas não podemos pensar assim, caso contrário não fazemos nada. Eu não teria feito o que faço hoje se tivesse seguido esta linha de pensamento.”

O despertador do telefone de Mouglalis toca, a actriz tem de partir. Como é hora de ponta decide apanhar o metro, acompanho-a.

Nos corredores do meio de transporte mais rápido de Paris todos reagem à sua presença. Ela que tem muitas vezes a cara exposta em cartazes publicitários capazes cobrir prédios, que tem motoristas à sua disposição quando trabalha, desloca-se livre da força que a impede de ser anónima.Os que estão dentro daquela carruagem de metro inclinam-se na sua direcção. Muitos olham por ser uma mulher bonita, alguns parecem não acreditar, outros tentam ouvir a sua voz para ter a certeza.

O sentido da palavra aura está ali. A presença de Anna Mouglalis muda o espaço.

A aura de uma actriz extraordinária tem esse poder incandescente, ilumina os rostos dos que se apercebem, que um momento de cinema acabou de passar por eles.

(uma versão deste texto foi publicada na Vogue de Maio 2009.

O filme Coco Chanel & Igor Stravinsky fechou a Seleção Oficial do Festival de Cannes 2009 e estreia nos cinemas em Setembro)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

A valsa dos amantes

Um amigo meu sempre que pode submete as raparigas a um teste. Este amigo antecipa o amor observando as raparigas de que gosta enquanto dançam. Através dos movimentos consegue adivinhar-lhes a intensidade sexual. Brutais ou românticas, para a vida eterna ou para os próximos quinze dias. Ao vê-las dançar sabe, se deve ficar ou se deve fugir. Enquanto o ouvi falar da sua superstição, lembrei-me da crença.

Diz-se por aí, que quem dança bem é bom amante. Diz-se que tal coisa é verdade e esta história anda nas bocas do mundo há já algum tempo. Ao que parece serve para todos os sexos e combinações possíveis. Ninguém escapa. Estamos todos sujeitos ao julgamento circunstancial.

Se decidirmos levar ao extremo o exercício de acreditar neste mito, é impossível não esboçar um sorriso.

Imaginem que à vossa frente têm uma pessoa que não mexe os pés enquanto dança. Será que desta forma nos está a denunciar que durante o coito fica sempre na mesma posição?! Ou se for um dançarino que insiste em levantar os braços, dando murros na direcção do céu, estará ele a declarar ao mundo o seu lado sadomasoquista?

Com tais exemplos exagero obviamente, a análise dos supersticiosos não é tão radical. Mesmo assim o discurso deles espalhou-se, e tornou os bons dançarinos indissociáveis da ideia de que também são bons nos outros movimentos que praticam na vida. A altas horas da noite, ninguém quer ouvir uma lógica muito complicada, por isso seguiu-se o caminho da associação fácil, bom bailarino/bom amante. Porque se em vez disso admitíssemos que na discoteca a realidade é como em todo o lado, estragávamos a festa. Rapidamente chegaríamos à conclusão de que nos habituámos a viver com uma sensação de escrutínio constante. E é a partir desse escrutínio que nos escolhemos uns aos outros. Nem na pista de dança, local onde devíamos dançar livremente, nos esquecemos da imagem que tentamos passar para o exterior.

Os que são reservados dançam menos, certo. Alguns chegam mesmo a não dançar, mas serão por isso terríveis amantes? E ao escrever isto, não estarei a estragar este texto com uma vontade de anarquia?

Para me afastar dos meus pensamentos que cultivam diversidade procuro respostas perto de pessoas que me parecem ser especializadas na matéria. Questiono dois sexólogos e um coreógrafo de dança contemporânea sobre o famoso mito
nocturno.

O sexólogo Júlio Machado Vaz começa por me dizer que desse mito não sabe nada. Insisto, pergunto-lhe simplesmente, o que é ser bom amante nos dias de hoje?

A sua resposta traz a anarquia de volta ao meu texto: “Numa sociedade de consumo, rendida à imagem da juventude e ao paradigma da eficácia, receio que estejamos a falar de concorrentes ao Guinness e não de aprendizes pacientes do erotismo.”

À sexóloga Marta Crawford, pergunto se um bom dançarino é obrigatoriamente um bom amante? Crawford confirma-me, “as pessoas que se mexem bem, parecem ter um grande controlo sobre o corpo, mas um bom amante é aquele que está atento a tudo o que outro precisa, e essa percepção nem todos os dançarinos têm.”

Leitores que se mexem pouco respirem, a anarquia apoderou-se deste texto.

Segundo Crawford, “o nosso comportamento social não pode determinar as nossas qualidades sexuais.” A sexóloga diz-me ainda serem frequentes os casos de pessoas que envergonhadas e receosas no quotidiano, conseguem tornar-se peritas na intimidade.

Caçadores nocturnos, comecem então a olhar para todos os lados e incluam os cantos da discoteca, onde se escondem os tímidos, no vosso perímetro de engate.

O coreógrafo Tiago Guedes tem tam-
bém uma visão que não encaixa com
o que se conta nas noites escuras. Para o
coreógrafo dançar bem não tem que ver com movimento, mas sim com a relação que se tem com o próprio corpo. E Tiago Guedes não tem a certeza de que uma pessoa que se relacione bem com o seu corpo, consiga relacionar-se bem com o corpo dos outros.

Estraguei tudo? Desfiz o mito do meu amigo, o mito dos observadores atraídos pela facilidade dos que se movimentam agilmente? A intenção não era essa.

A intenção é fazer-vos dançar, e inventar uma outra crença, a de que nós portugueses dançamos sempre. Como me dizia Guedes, “é preciso dançar como se estivéssemos sozinhos em casa, é preciso aproveitar a pista, transformá-la num sítio de ritual, é preciso esquecer a preocupação social e fazer com que a dança se torne numa experiência pessoal.”

Deixem-nos então dançar, longe do diz-que-disse, longe do julgamento.

Somos bons ou maus? Ninguém nos pode dizer.