quinta-feira, 16 de julho de 2009

O encontro com Anna Mouglalis


É uma das actrizes de cinema mais respeitadas em França. É também um ícone de moda, desde os 24 anos de idade que é embaixadora da marca Chanel. Agora aos 30, o realizador Jan Kounen fez-lhe uma proposta irresistível: dar vida à estilista que mudou a silhueta feminina. Foi assim que Anna Mouglalis se transformou em Coco Chanel.

Em Paris, a esplanada do célebre café “Les Deux Magots” no bairro de St-Germain fica silenciosa com a chegada da actriz Anna Mouglalis. As pessoas observam-na, segredam o seu nome, alegram-se.

Silhueta esguia, voz rouca e olhar felino são qualidades que transporta consigo. Não passam despercebidas, seja na vida real ou na ficção.A maneira natural e descontraída com que se apresenta torna a sua beleza estonteante, é por isso imediato o contraste com as imagens que a imprensa costuma veicular de si. Quando se observa a sua silhueta com atenção, o símbolo Chanel aparece discreto nas roupas que veste. É assim que denuncia a condição de embaixadora de uma das maiores marcas de luxo do mundo. A sua aliança com Chanel começou em 2002, “de forma repentina e inesperada”, comentava-se quando assinou um contrato que se dizia milionário. Ela era apenas uma jovem de 24 anos, revelada por um filme de Claude Chabrol, “Merci pour Le Chocolat”. Foi o encontro com Karl Lagerfeld que despoletou tudo. Ele não poupa elogios quando se refere à actriz francesa: “É divina, pouco convencional, detentora de uma beleza intemporal. A palavra estilo é indissociável da sua figura”. Nos anos que seguiram esta aliança com Chanel, a actriz protagonizou mais de 13 filmes. As suas escolhas cinematográficas eram arriscadas, no cinema era uma figura do underground, nas páginas das revistas era uma estrela. Foram as campanhas publicitárias para os perfumes Allure e Allure Sensuelle que a tornaram famosa.Durante algum tempo Anna Mouglalis foi mesmo confundida com as modelos que tentam reconversão na sétima arte. Mas ela era actriz de corpo e alma.Mouglalis diz nunca se ter preocupado com as projecções dos outros. “O olhar das pessoas afastou-me da arte dramática, mas eu nunca a deixei. Sim, foi a Chanel que me tornou conhecida, e agora é graças a Coco Chanel, que tenho um papel num filme comercial, um filme diferente de todos os que fiz até hoje. Isto sim, é uma história bonita.” A actriz não esconde o prazer na frase que acaba de pronunciar. Pois alinha o seu percurso de forma credível. Nada acontece por acaso em tão brilhante figura. E todos os acasos podem ser aproveitados, transformados em substância de combustão.Mouglalis nunca questionou o seu talento de actriz, pode duvidar de tudo, menos do seu trabalho. As portas que se fecharam por transportar consigo um universo de glamour, acabaram por abrir outras.A marca Chanel deu-lhe a conhecer um mundo que desconhecia: “Quando comecei a trabalhar na moda, pensei ter de lidar com pessoas de uma futilidade extrema, depois conheci o Karl (Lagerfeld) e tive uma visão completamente diferente. Ele é o século dele, inspira-se em tudo. E a moda é magnífica quando se inspira, seja numa época, seja noutras artes”.Enquanto fala os seus gestos acariciam o vazio do espaço. A actriz decide então programar o despertador do seu telefone, não quer olhar para o relógio enquanto conta a experiência que viveu ao filmar “Coco Chanel e Igor Stravinsky”, de Jan Kounen. Esta é a primeira vez que fala do filme, as filmagens acabaram há pouco tempo, mas Paris já tem cartazes espalhados a anunciar aquela que será uma das longas-metragens mais aguardadas no festival de Cannes.

Mouglalis pôs uma condição para podermos realizar esta entrevista: “Preciso de estar num sítio onde me deixem fumar”. Este vício torna-se relevante pois junta à sua silhueta um tique próprio a Coco Chanel, a personagem que acabou de encarnar. Ambas parecem ter em comum a aura que deu nome ao perfume, “Allure”, podemos chamar-lhe porte ou mesmo raça. Paul Morand um dos inúmeros escritores que escreveu sobre Coco Chanel dizia que o porte na atitude da estilista existia em todos os sentidos do termo. Era porte físico e moral. Isso é também flagrante na mulher que se encontra à minha frente.O físico de Mouglalis foi ligeiramente modificado, os longos cabelos castanhos estão agora curtos e pretos, são restos dos quatro meses em que viveu outra vida. Na sua maneira de estar sente-se o abandono de quem foi absorvido por outra realidade. A actriz parece ter esgotado um desejo de sedução, próprio aos actores, durante o tempo em que se entregou à sua personagem. Quando descreve Chanel, embala-se, ainda tem um pouco dela dentro de si.Nos anos 20 do século passado, a estilista transgrediu os códigos sociais – os códigos sexistas. “Coco foi alguém que conseguiu construir um império graças ao dinheiro que ganhou. Ela mudou a projecção que se tinha das mulheres daquela época, incarnou a mulher moderna”. E é assim que Mouglalis decide coroar Chanel com um elogio inesperado: “Ela era uma punk”.Na boca da actriz, “punk” é revolução, é resistir ao sistema, é fazer frente ao julgamento alheio, é inovar sem nunca abdicar da elegância. “Eu geralmente pergunto onde se situa o meu amor e admiração pela personagem que interpreto. Tenho de a conseguir amar, não a posso julgar. Chanel foi uma pessoa muito controversa, admirável, mas muito dura. O que a representa melhor é o preto e o branco, ela era assim.”

Coco Chanel restituiu a liberdade ao corpo das mulheres, livrando-as dos espartilhos e dos folhos exagerados. Quando criou o mítico perfume Nº 5, foi a primeira a juntar vários odores numa só fragrância. Tentou criar algo que resistisse ao tempo, o perfume tornou-se um clássico.Coco Chanel e Igor Stravinsky” não é um filme biográfico comum, pois centra-se somente num episódio da sua vida. A acção concentra-se na relação amorosa que a estilista teve no início do século passado com o compositor russo Igor Stravinsky (interpretado por Mads Mikkelsen).Em 1913, Chanel assistia à estreia da “Sagração da Primavera”, de Stravinsky. Ela ficara fascinada, mas o público reagiu ao bailado de outra maneira, “as pessoas andaram à luta, a polícia teve de intervir, aquilo foi um escândalo e isso transportou-a completamente”, conta Mouglalis .Passados sete anos Chanel voltou a cruzar-se com Stravinsky. Ela era rica, ele estava exilado em Paris por causa da revolução russa. Casado e com filhos, Stravinsky era considerado um génio, mas vivia sem recursos.Foi Chanel que o sustentou durante alguns anos, e assim convidou o compositor a viver em sua casa. Mesmo que assombrados pela presença da mulher de Stravinsky, ambos seriam consumidos por uma atracção eléctrica, acabariam por se tornar amantes. “Chanel vinha de um meio modesto, foi graças ao seu trabalho e ao dinheiro que ganhou que teve acesso ao mundo artístico. Ela admirava o talento de Stravinsky, ao possuí-lo encontrava maneira para que ele a admirasse também”. Mouglalis diz que através deste momento se pode contar toda a história de Chanel: “Ela sacrificou a sua vida afectiva pela vida profissional; neste filme conta-se a sua vida através de uma paixão. É uma faceta sua que não se conhece. Isso deu-nos muita liberdade”. O filme segue depois a trajectória de cada um deles, foi uma relação que não durou muito tempo, mas a estilista e o compositor nunca se perderam de vista. O azar fez que ambos morressem em 1971.

Anna Mouglalis decide mostrar algumas fotografias que tem no telefone, está caracterizada de Coco Chanel já velha. As fotografias são cruas, parecem reais. A actriz diz que sentiu vertigens quando se viu assim, “ o cinema comercial permite isto mesmo, atingir a maravilha”.De Coco Chanel conhece-se uma espécie de mitologia. A juventude dela difere de biografia para biografia, Chanel contava sempre versões diferentes da sua vida, nunca assumiu as suas origens modestas. A actriz acha que isso torna a sua personagem ainda mais heróica, e não suporta que se desmistifique tudo em prol da verdade, “é bom que façam investigações, mas quando se trata de artistas que tentaram inventar um mundo?”Acaba por rematar que a vida de Chanel foi uma obra só por si.Mouglalis no início de sua carreira admitiu várias vezes uma procura parecida a esta. A sua vida também podia ser uma história. Ela projectava no futuro um destino trágico ou magnífico. Esta intensidade que reivindicava punha a imprensa ao rubro. A beleza, o sucesso e esse furor de vida ajudaram em muito a construção da sua personagem pública. Actualmente já não pensa desta forma, mudou quando teve a sua filha. Ao ser mãe descobriu que o quotidiano também pode ser extraordinário, o excesso pode estar em tudo o que se faz.A liberdade a que Anna Mouglalis aspira é aquela que se alimenta de um desejo louco e consegue alcançar os sonhos pretendidos.“Coco Chanel pôs a liberdade dela na independência, e eu trabalhei desde cedo para isso. A nossa sociedade é muito psicológica, tenta que nas nossas vidas tudo se defina a partir da história dos nossos pais. Mas não podemos pensar assim, caso contrário não fazemos nada. Eu não teria feito o que faço hoje se tivesse seguido esta linha de pensamento.”

O despertador do telefone de Mouglalis toca, a actriz tem de partir. Como é hora de ponta decide apanhar o metro, acompanho-a.

Nos corredores do meio de transporte mais rápido de Paris todos reagem à sua presença. Ela que tem muitas vezes a cara exposta em cartazes publicitários capazes cobrir prédios, que tem motoristas à sua disposição quando trabalha, desloca-se livre da força que a impede de ser anónima.Os que estão dentro daquela carruagem de metro inclinam-se na sua direcção. Muitos olham por ser uma mulher bonita, alguns parecem não acreditar, outros tentam ouvir a sua voz para ter a certeza.

O sentido da palavra aura está ali. A presença de Anna Mouglalis muda o espaço.

A aura de uma actriz extraordinária tem esse poder incandescente, ilumina os rostos dos que se apercebem, que um momento de cinema acabou de passar por eles.

(uma versão deste texto foi publicada na Vogue de Maio 2009.

O filme Coco Chanel & Igor Stravinsky fechou a Seleção Oficial do Festival de Cannes 2009 e estreia nos cinemas em Setembro)

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