Um amigo meu sempre que pode submete as raparigas a um teste. Este amigo antecipa o amor observando as raparigas de que gosta enquanto dançam. Através dos movimentos consegue adivinhar-lhes a intensidade sexual. Brutais ou românticas, para a vida eterna ou para os próximos quinze dias. Ao vê-las dançar sabe, se deve ficar ou se deve fugir. Enquanto o ouvi falar da sua superstição, lembrei-me da crença.
Diz-se por aí, que quem dança bem é bom amante. Diz-se que tal coisa é verdade e esta história anda nas bocas do mundo há já algum tempo. Ao que parece serve para todos os sexos e combinações possíveis. Ninguém escapa. Estamos todos sujeitos ao julgamento circunstancial.
Se decidirmos levar ao extremo o exercício de acreditar neste mito, é impossível não esboçar um sorriso.
Imaginem que à vossa frente têm uma pessoa que não mexe os pés enquanto dança. Será que desta forma nos está a denunciar que durante o coito fica sempre na mesma posição?! Ou se for um dançarino que insiste em levantar os braços, dando murros na direcção do céu, estará ele a declarar ao mundo o seu lado sadomasoquista?
Com tais exemplos exagero obviamente, a análise dos supersticiosos não é tão radical. Mesmo assim o discurso deles espalhou-se, e tornou os bons dançarinos indissociáveis da ideia de que também são bons nos outros movimentos que praticam na vida. A altas horas da noite, ninguém quer ouvir uma lógica muito complicada, por isso seguiu-se o caminho da associação fácil, bom bailarino/bom amante. Porque se em vez disso admitíssemos que na discoteca a realidade é como em todo o lado, estragávamos a festa. Rapidamente chegaríamos à conclusão de que nos habituámos a viver com uma sensação de escrutínio constante. E é a partir desse escrutínio que nos escolhemos uns aos outros. Nem na pista de dança, local onde devíamos dançar livremente, nos esquecemos da imagem que tentamos passar para o exterior.
Os que são reservados dançam menos, certo. Alguns chegam mesmo a não dançar, mas serão por isso terríveis amantes? E ao escrever isto, não estarei a estragar este texto com uma vontade de anarquia?
Para me afastar dos meus pensamentos que cultivam diversidade procuro respostas perto de pessoas que me parecem ser especializadas na matéria. Questiono dois sexólogos e um coreógrafo de dança contemporânea sobre o famoso mito
nocturno.
O sexólogo Júlio Machado Vaz começa por me dizer que desse mito não sabe nada. Insisto, pergunto-lhe simplesmente, o que é ser bom amante nos dias de hoje?
A sua resposta traz a anarquia de volta ao meu texto: “Numa sociedade de consumo, rendida à imagem da juventude e ao paradigma da eficácia, receio que estejamos a falar de concorrentes ao Guinness e não de aprendizes pacientes do erotismo.”
À sexóloga Marta Crawford, pergunto se um bom dançarino é obrigatoriamente um bom amante? Crawford confirma-me, “as pessoas que se mexem bem, parecem ter um grande controlo sobre o corpo, mas um bom amante é aquele que está atento a tudo o que outro precisa, e essa percepção nem todos os dançarinos têm.”
Leitores que se mexem pouco respirem, a anarquia apoderou-se deste texto.
Segundo Crawford, “o nosso comportamento social não pode determinar as nossas qualidades sexuais.” A sexóloga diz-me ainda serem frequentes os casos de pessoas que envergonhadas e receosas no quotidiano, conseguem tornar-se peritas na intimidade.
Caçadores nocturnos, comecem então a olhar para todos os lados e incluam os cantos da discoteca, onde se escondem os tímidos, no vosso perímetro de engate.
O coreógrafo Tiago Guedes tem tam-
bém uma visão que não encaixa com
o que se conta nas noites escuras. Para o
coreógrafo dançar bem não tem que ver com movimento, mas sim com a relação que se tem com o próprio corpo. E Tiago Guedes não tem a certeza de que uma pessoa que se relacione bem com o seu corpo, consiga relacionar-se bem com o corpo dos outros.
Estraguei tudo? Desfiz o mito do meu amigo, o mito dos observadores atraídos pela facilidade dos que se movimentam agilmente? A intenção não era essa.
A intenção é fazer-vos dançar, e inventar uma outra crença, a de que nós portugueses dançamos sempre. Como me dizia Guedes, “é preciso dançar como se estivéssemos sozinhos em casa, é preciso aproveitar a pista, transformá-la num sítio de ritual, é preciso esquecer a preocupação social e fazer com que a dança se torne numa experiência pessoal.”
Deixem-nos então dançar, longe do diz-que-disse, longe do julgamento.
Somos bons ou maus? Ninguém nos pode dizer.
Sem comentários:
Enviar um comentário