Estas linhas que escrevo nasceram na pista de dança.
Debaixo de luzes estonteantes e música hipnotizante dou por mim a contabilizar horas aos meus voos nocturnos; sinto o cérebro a transformar-se num daqueles cartões de passageiro frequente. Nas linhas aéreas as viagens acumuladas oferecem uma à borla de vez em quando, a borla que me ofereço é a lembrança da primeira vez (na discoteca).
Lembro-me da preocupação que tive em encontrar na aparência um ar credível, um ar velho quando ainda era novo. Lembro a procura de sapatos, com dois números acima do tamanho real, para inventar um andar falsamente amadurecido. Lembro a camisa de quadrados encarnados, que dentro do armário do meu irmão parecia normal, mas nos meus traços adolescentes ganhava um toque involuntariamente punk.
Lembro a aprovação dos meus colegas de escola e as palavras encorajadoras que pronunciaram. As nossas forças juntavam-se para vermos um desejo de diversão realizado. Éramos miúdos dos arredores, queríamos fazer parte da cidade. Desconhecíamos a força dos decibéis e por causa deles dançámos. O nosso entusiasmo maravilhado denunciava inexperiência: o coração batia com força, a boca secava de ansiedade, o corpo gritava. Era bonita a inocência.
Na discoteca onde inicio este pensamento, tento perceber se as pessoas têm movimentos que evocam memórias de um entusiasmo parecido com o meu, tento encontrar o calor desinquietante que senti. Mas actualmente fala-se pouco dos tempos passados e o olhar visa um futuro negativo. É por isso necessário engatar esse futuro com forças ancestrais.
Nos dias que correm as recordações assumem-se, estranhamente, nas redes virtuais da internet (Facebook, Myspace, Twitter). Nas páginas onde juntamos amigos de toda a parte, colocam-se também videoclips e links para histórias antigas que nos desenham a personalidade.
Foi assim que no Facebook perguntei aos meus amigos: “A vossa primeira vez na discoteca como foi?”
Nas dezenas de respostas que recebo, descubro que fomos todos assombrados por padrões de comportamento idênticos, sobretudo na “arte” de sair à noite.
A nossa primeira vez foi parecida, quase igual. Nas especulações, nas expectativas, nos sonhos.
O nosso olhar escondeu medo e os corações dentro do peito sugeriram sinais idênticos de agitação. Os nossos sentimentos misturaram-se quando tentámos entrar pela porta do desconhecido mundo musical nocturno.
Constato então que a passagem para dentro da discoteca, nem sempre foi feita nas condições ideais: muitos sentiram-se a invadir um espaço que não era deles, descrevem o olhar das pessoas mais velhas como algo de incomodativo, constatavam que nem todos acolhiam de bom grado aquele debutar nocturno.
Primeira lição: as pessoas andam no mundo para se dificultar a vida umas às outras, sendo os porteiros perfeitos embaixadores deste ensinamento. Foi por isso obrigatório entrar no jogo deles, encará-
-los como “figuras de treino” perfeitas para praticar a persuasão que nos seria exigida mais tarde, no resto das nossas vidas. Foi por causa destes guardiões de portas que inventámos disfarces de adultos, vestimos outras peles e simulámos poses para desviar a atenção dos nossos traços jovens.
Como quase sempre se agarrava na primeira oportunidade para ir à discoteca, houve quem acabasse por se “baptizar” em cidades longínquas, insólitas de nome (estamos em Portugal não se esqueçam). Alpiarça, Amadora, Peniche, Caldas da Rainha, Cadaval, Cascais e inúmeras vilas na zona do Algarve passariam a ser referências nocturnas para muitas pessoas; foi ali que fumaram os primeiros cigarros e derramaram as primeiras gotas de álcool no sangue.
O prelúdio das saídas nocturnas viu–se também muitas vezes condenado a matinés, esse género de discoteca que se faz durante a tarde, afastando assim as expectativas dos sonhos. Mas com a primeira saída o sentimento de liberdade ficava irremediavelmente aguçado e fosse onde fosse a primeira vez era momento para festejar, dançar como se não houvesse amanhã.
A discoteca foi um ritual de passagem, foi o momento em que o estatuto da juventude mudou, em que se entrou num género de crescimento qualquer (físico
e psicológico).
A primeira vez atiçou os acontecimentos que mais tarde embelezaram a adolescência: o primeiro beijo, a dita virgindade, o tal diploma, o primeiro trabalho, o primeiro amor, até chegar aos dias de hoje em que já adultos, sentimos ter um bocado de vida para trás.
Agora atravessamos um deserto: com a crise financeira inflamada e o discurso festivo atacado, não valerá a pena pensar no início? Encarar o futuro com esse entusiasmo iniciático na cabeça e deixar vir à superfície a nostalgia do passado. Pensar como se pensou na primeira vez, em que tudo foi magia.
A primeira vez é saber que ainda nos restam inúmeras primeiras vezes, é entusiasmar o coração.
Trata-se de manter os sonhos vivos, como nos tempos em que éramos virgens de tudo.
Foi assim que começámos, a vender a alma por uma festa. Então toca a lembrar, a primeira vez como é que foi?
texto publicado no jornal Luxfrágil, Abril 2009.
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