quinta-feira, 16 de julho de 2009

o meu fado

(escrevi este texto para o jornal do Lux, não foi publicado)

Um tipo como eu sai muitas vezes à noite somente para procurar histórias. Esquecendo o seu metro e 64 de altura, perde-se em encruzilhadas. Digo encruzilhadas porque ter baixa estatura neste mundo, significa presa fácil para os que procuram confrontos de força. Mas um tipo como eu, encontrou no tempo sensibilidade suficiente para enfrentar caminhos pouco iluminados. E não hesita, mesmo que as encruzilhadas sejam duvidosas cheias de poças, lama e neons fundidos.

Desde o primeiro contacto que tive com a pista de dança que sinto no olhar dos “clubbers” um carinho especial. Confesso, nunca o suportei. Muitos passavam-me a mão pela cabeça e faziam-no por causa do meu metro sessenta e tal de altura, faziam-no porque aos “gigantes” não chegavam a “festas” daquele género.
A minha baixa estatura instigou desde sempre um contacto fácil, e durante anos lutei contra essa evidência provocada pelas aparências; ensaiei atitudes problemáticas, escondi-me para que não fosse possível uma aproximação, usei mesmo chapéus para que não me tocassem na cabeça.
Mais tarde percebi que o metro sessenta e pouco associado a boas palavras poderia ser considerado “talento” na hierarquia nocturna. Não representando qualquer ameaça para fisionomistas de discoteca e os seus seguranças, foram-me abertas portas de lugares imperdíveis. Com o tempo juntei à minha altura uma retórica inabalável, evitando desta forma qualquer possibilidade de negação. Reproduzi o esquema vezes sem fim, certifiquei-me da sua eficácia, lembrei-me até de montar um negócio para aconselhar amigos barrados sucessivamente na arte festiva. Mas o meu discurso não era matemático, surgia apenas de uma atracção natural pela dança..
Num passeio nocturno muito recente, perto do Cais do Sodré, descobri que a minha técnica de persuasão nocturna começou a desbotar para outros momentos de vida. Percebi isso quando no outro dia os objectos que costumo guardar nos bolsos (carteira, moedas, notas, telemóvel, ipod), foram parar às mãos de quatro desconhecidos.
Fui assaltado, só que foi um assalto diferente .
Os ladrões depois de me terem cercado, encontraram no meu discurso nocturno palavras fraternais, e a meio da agressão um deles proclamou: “Este rapaz não pode ser assaltado”.
A espiral foi então invertida, e os objectos que me tinham sido roubados minutos antes voltaram para mim.
A retórica que usei durante os gestos bruscos, passou-me para o lado do inimigo; usei a mesma técnica que uso há anos para entrar nas discotecas. Enquanto me assaltavam sorri. Fiz o que me pediram dando a minha opinião, procurei segundos de cumplicidade e nunca tentei armar-me em esperto. A partir desse momento os ladrões trataram-me com respeito. Depois de aceitar os meus bens (com alguma cerimónia confesso), e ouvir os ladrões dizer “segue em paz”, tentei perceber a lógica daquele momento.
Na minha cabeça desfilaram imagens, pensei na vida a imitar o cinema.
Lembrei-me do que se diz, “o mal nunca se transforma em bem”, e imaginei más pessoas a salvar o mundo e salvadores a destruírem-no. Minutos mais tarde pus a hipótese de os ladrões terem percebido que eu era artista: automaticamente reduzido a um eterno roubado.
Uma hora depois comecei a sentir-me como eles, um pouco bandido... Andava à deriva a roubar ideias nos gestos dos desconhecidos.
Nas ruas vazias, procuram-se milagres. No caso dos ladrões, um milagre encontra-se numa carteira alheia.
No meu caso o milagre foi ser assaltado, porque na minha linguagem reconheceram palavras de (sobre)vivência.

1 comentário:

Paulo disse...

You can leave your hat on.