quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Sexo do outro mundo


A nova série de Alan Ball chama-se “True Blood”. É sobre vampiros. Um pretexto para denunciar homofobia, racismo...

 A acção da nova série produzida pelo canal HBO “True Blood” situa-se no estado da Luisiana, em Bon Temps, cidade imaginária. Não muito longe de Nova Orleães, a capital que mostrou ao mundo imagens que se julgavam impossíveis de existir nos EUA- estamos no estado que em 2005 foi atingido pelo furacão Katrina. A acção passa-se nos dias de hoje. E qualquer semelhança com a realidade é pretendida.

Num supermercado à beira da estrada, alguns jovens procuram diversão, invadidos pelo tédio, interrogam um vendedor: querem saber se há vampiros ali. Naquelas paragens pensa-se que os vampiros morreram afogados com as inundações provocadas pelo “Katrina”. “Mas os vampiros não precisam de respirar” - detalhe anunciado logo na primeira cena de “True Blood”. Os vampiros já estão mortos de qualquer maneira. No mesmo supermercado, uma televisão emite imagens de um talk-show onde uma senhora explica que, graças à invenção de um sangue sintético, os vampiros puderam finalmente assumir-se na sociedade dos mortais. Fizeram um “coming out”: saídos agora do caixão, pedem igualdade, os mesmos direitos cívicos dos humanos. Por instantes tem-se a sensação de assistir a um debate do mundo real, como se alguém estivesse a argumentar contra a Proposition 8, proposta que visa mudar a constituição estadual californiana para eliminar o direito de pessoas do mesmo sexo de casarem. O tom com que a representante dos vampiros fala é empenhado, como o dos líderes das grandes causas activistas.

No genérico, entre imagens de seitas religiosas e raparigas que se despem, destaca-se um cartaz luminoso que tem escrito “god hates fangs”. Podia ser um slogan homofóbico. Mas não é. “Fangs” são os caninos afiados; fags é um insulto (“panascas”) contra os homossexuais. Em “True Blood” fala-se de vampiros, mas a alusão é clara – com a diferença combate-se a ignorância. Uma mensagem destinada aos grupos religiosos que excluem os que não encaixam nas interpretações que fizeram das sagradas escrituras. Ainda o genérico de “True Blood” não acabou, já a série se empenha em desafiar o mundo. Isto é só o começo.

Sexual e mortal

Os vampiros exercem na ficção em geral um fascínio inexplicável sobre os humanos. Não se trata somente da atracção pela vida eterna; existe um fascínio sexual. Uma carga erótica tem sido atribuída à dentada vampírica. Todas as ficções deste tipo (“Drácula” de Bram Stoker; os livros de Anne Rice) agarraram essa conotação: quando se é mordido – num acto de quase submissão – passa-se a pertencer àquele que morde, para sempre. O deslumbramento pelos vampiros cresce com esta possibilidade de pertença, uma ideia que as histórias fomentam ao longo dos tempos. Estar ligado a alguém eternamente, viver o amor eterno, arriscar a vida.

Não é a primeira vez que Alan Ball, o homem por detrás de “True Blood” se envolve com a morte. Em “Sete Palmos de Terra”, ele construía uma narrativa à volta de uma família que geria uma agência funerária. Durante quatro anos, público e crítica foram conquistados pelo formato original da série. Era complexo, mas plausível. Captava com perspicácia a incapacidade do mundo moderno face à morte, desmitificando-a.

“True Blood”, não parte de uma ideia original de Ball, que foi buscar inspiração aos contos de Charlaine Harris, autora reconhecida num tipo de literatura onde se mistura o real com o além.

Sookie Stackhouse é a personagem principal da sua série de livros, “Southern Vampire Mysteries”. No pequeno ecrã é a actriz Anna Paquin que lhe dá vida.

Sookie trabalha como empregada num bar, vive bem a sua existência de rapariga rural. A sua grande dificuldade consiste em conviver com o seu poder sobrenatural. Ela é capaz de ouvir os pensamentos das outras pessoas.

A vida de Sookie muda quando conhece Bill (Stephen Moyer). Um vampiro que entra no bar onde trabalha porque se sente sozinho, tenta refugiar-se num copo de sangue sintético. A atracção é imediata, o encontro de Sookie com Bill é acompanhado do lirismo próprio do universo de Ball, tanto comove como faz rir na cena seguinte. “Ele é bonito como um actor num filme da TCM” é o que Sookie diz depois de o conhecer. Os olhares deles convergem na mesma direcção. A virgindade de Sookie é corroída pela presença sexual de Bill. Em “True Blood” os vampiros transpiram sexo, falam muito dele.  E são amantes excepcionais, mas é tabu um mortal assumir uma sexualidade com um vampiro. Os que o fazem, são tratados por “fang bangers” e guardam cicatrizes de dentadas profundas. E desde que os vampiros apareceram em Bon Temps há jovens que aparecem mortas. Sobretudo as que se emanciparam sexualmente - as que tiveram sexo com o outro mundo.

As personagens secundárias destacam-se por vincar ainda mais a mensagem política da série. A melhor amiga de Sookie, afro-americana, diz tudo o que pensa sobre a América racista. Quando se cruza com um vampiro pela primeira vez, pergunta-lhe se, ao longo dos seus quase 200 anos de vida, ele possuiu escravos. Lafayette, cozinheiro homossexual, trafica droga, prostitui-se, afirma que pela cama dele terão passado homens que ninguém imaginaria. É o oposto de David Fisher, de “Sete Palmos de Terra” que vivia a sua homossexualidade com uma relação estável, chegando a adoptar crianças. Nesta nova série, Ball parece querer quebrar todos os padrões de comportamento que criou. Desde que os episódios começaram a ser exibidos no passado dia 7 de Setembro na HBO, ainda não se encontrou nas personagens a mesma complexidade psicológica de “Sete Palmos de Terra”. Ainda é tudo muito estereotipado. Os críticos Americanos não têm sido unânimes no julgamento que fazem ao esforço inovador de Ball. Muitos dizem que não chega. A revista “Time” anunciava com humor, dois dias antes da série estrear, que era necessário pensar de imediato numa transfusão. E o “New York Times” vincava que as mensagens de alusão nos diálogos ao racismo nunca chegavam a ter eficácia do genérico inicial.

Alan Ball disse numa entrevista à HBO que o importante para a sua série depois de estrear era poder ter uma vida própria. Empenhado em fazê-lo e, quatro meses antes de se poder ter uma ideia de como seria realmente um episódio de “True Blood”, a internet já tinha sido invadida.

Num esforço imaginativo, dezenas de vídeos foram postos on-line, com debates sobre a aceitação de vampiros no mundo, sendo possível recolher informações sobre a American Vampire League, conhecer as razões que levam os membros da instituição Fellowship of the Sun a proteger a humanidade de vampiros. Foram feitas campanhas publicitárias para a bebida de sangue sintético (também ela com um “site”). Em Bloodcopy.com, podemos seguir testemunhos inéditos das personagens de “True Blood”. Houve ainda tempo para imaginar campanhas contra a discriminação (iguais às que se fazem contra o racismo) ou anúncios de motéis com caixões disponíveis. “True Blood” tem vida própria, confunde-se com a nossa realidade. Como lembra uma personagem ao longo do primeiro episódio... Saberemos nós o número certo de pessoas que andam por aí a ter sexo com vampiros?

 www.bloodcopy.com


Tiago Manaia

Texto publicado no suplemento do jornal público, ípsilon 17 Outubro 2008.

 

 

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