segunda-feira, 2 de junho de 2008

Acreditar na Ana Moreira



Acreditar que na vida existem momentos irreais que surgem de pequenas equações e combinações exactas, deveria ser um mal comum. Acreditar que os acontecimentos quotidianos somados uns aos outros podem
tornar a realidade mais poética e misteriosa, é uma utopia, mas é bom acreditar.


Quando se tem um encontro com uma actriz pela qual sentimos algum fascínio, não esperamos que ela chegue antes da hora prevista e fique à nossa espera a ler um livro. Quando isto acontece, a equação começa a desenhar-se num sentido favorável à poesia.

Durante a nossa conversa gravo as palavras de Ana Moreira e mais tarde constato que as suas frases têm efeitos sonoros, vêm acompanhadas de suspiros. O fôlego da sua respiração altera-se quando é obrigada a perder algum pudor nas histórias que conta. Falar do ego, explicar o trabalho e ser social não lhe é particularmente fácil, mas sabe fazê-lo.

O pudor que caracteriza Ana no dia-a-dia é assumido nas mãos que tremem quando apaga um cigarro, nos suspiros que rematam os seus finais de frase e no silêncio que por ali fica quando pára de falar. O irreal surge quando nos perdemos no seu olhar e acreditamos que o barulho dos copos que se partem nas mesas à nossa volta deixa de existir, que os aviões passam a aterrar em silêncio em Lisboa e o i-pod (que grava a nossa conversa) deixa de funcionar por causa da sua intensidade. Acreditar nestas coincidências é deixar que a memória se encha de personagens inesquecíveis.

Poucas são as vezes que se ouve uma actriz falar de timidez, Ana diz ser tímida pelo bem, não pelo mal. Atribuem-lhe uma certa distância, é ela certamente que deixa a imaginação dos outros livre e facilita a projecção de personagens no seu corpo.

Ana Moreira nasceu em 1980 e cresceu em Lisboa por trás dos cinemas King, “naqueles jardins”. Durante a adolescência gostava de um género de cinema muito particular, que a deixava acordada noites seguidas - os filmes de terror. Descobriu assim o “Pesadelo em Elm Street”, o seu primeiro filme de terror urbano. No meio de blockbusters americanos, conseguiu encontrar dois filmes especiais, “Suspiria” de Dário Argento e “A Companhia dos Lobos” de Neil Jordan. “Para além do terror, do pânico, o cinema de Argento tinha ideias, pensamentos, maneiras de filmar, tratava cinema. Assim como o filme de Neil Jordan, este abordava o conto do capuchinho vermelho, mas de outra maneira. Nessa altura cheguei à conclusão de que me tinham estado a enganar durante muito tempo, afinal de quem eu gostava mesmo era do lobo”, assim explica aquilo que diz ter sido o grau básico dos seus sentimentos adolescentes.

Ana sentia-se atraída pelas artes, e decide estudar design gráfico, já que não era especialmente dotada para a fotografia ou para a pintura. Nas ilustrações de Aubrey Beardsley conheceu a personagem de Oscar Wilde, “Salomé”, ainda hoje sente por ela um enorme fascínio. Porque ela desafia as convenções que os homens fazem das mulheres, leva-as ao limite do aceitável. Na mesma altura fez um casting para uma curta-metragem - acompanhada de um sentimento de estranheza, de uma enorme curiosidade e de um prazer secreto - acabou por ser escolhida. A cassete desse casting foi parar às mãos de Teresa Villaverde com quem faria, em 1998, uma primeira longa-metragem, “Os Mutantes”. Interpreta uma jovem marginalizada pela sociedade, “uma sociedade que insiste em manter os olhos fechados”, vinca. “Perguntam-me muitas vezes se não foi difícil fazer de delinquente juvenil, toxicodependente... mas eu nunca fiz personagens assim”. Ana preocupa-se, acha estranha a perspectiva que algumas pessoas têm do cinema.

Recorda com nostalgia essas primeiras filmagens, numa época em que as equipas de trabalho em Portugal eram diferentes, “tinham charme, disponibilidade, consciência do trabalho de cada um”, ao mesmo tempo pensava que não se podia deslumbrar. Gostava muito daquilo, daquele mundo, gostava mais do cinema do que do design gráfico, mas queria avançar com cuidado.

Nesse primeiro filme é espantoso ver como Ana aborda as cenas dramáticas, representar para ela é prazer, gosta de se aventurar, mergulhar de cabeça, mesmo quando as situações podem ser propícias a um vampirismo de sentimentos. Enquanto actriz tenta fazer exactamente o que lhe pedem, corresponder o mais possível a visão da personagem que o realizador imaginou.

Seguiram-se outros filmes e aquela liberdade que sentira nos momentos da primeira rodagem com Teresa Villaverde tornou-se um ofício. Foi protagonista de várias longas-metragens, mas manteve-se à margem, o seu percurso pouco a levou à televisão, afastando-a da celebridade imediata. É normal que o seu trabalho seja ainda desconhecido do grande público, ela escolheu um caminho diferente, talvez mais complicado. Mas tem alguns admiradores, que a abordam sempre de maneira fugaz, surgem em locais inesperados -no supermercado ou no metro – são rápidos, deixam-na perplexa, ela gostava que eles ficassem mais tempo.

“Ser Actor é uma profissão vulnerável, é tão fácil criticar os actores. Como é uma profissão que mexe com o ego e a vaidade as pessoas parece que andam sempre à procura de sinais... Se lhes deres esse sinal, atiram-se logo a ti”. Talvez Ana se refira aos que pouco respeitam o estado de graça que é preciso ter para inventar mundos paralelos na ficção. Na cultura em Portugal, só na recta final das carreiras surge um reconhecimento geral, demasiado comprometido, e que acentua uma ideia de sacrifício e humildade estranha. Mas esta geração que não fez a revolução, anda provavelmente a tentar inspirar novos caminhos.

Em 2006 voltou a encontrar-se com Teresa Villaverde, em “Transe”, filme sobre tráfico humano, sobre pessoas a quem as vidas tinham sido roubadas para sempre. A personagem que interpretava deixava a terra natal à procura de uma oportunidade de trabalho, era levada mais tarde para uma rede de prostituição. Nesse ano o jornal francês Libération escrevia: “sem a actriz Ana Moreira, Teresa Villaverde nunca poderia ter atingido um tão grande efeito de verdade poética: ela anima a personagem de Sónia com uma palpitação terrível, tornando-a amargamente inesquecível”.

No trabalho Ana diz-se atenta aos sinais, tenta não ter demasiada consciência técnica quando está num plateau de cinema, “as vezes é melhor não saber” e utiliza a frase “dares-te a morte” para explicar o processo de criação que nasce a partir do que se passa à sua volta.

Jorge Cramez é dos poucos realizadores que a filma a sorrir, no “Capacete Dourado”(2007), a sua personagem agarra-se à vida por amor, atenuando assim uma adolescência difícil.

Quando pergunto a Ana se sente algum tipo de responsabilidade quando lhe pedem para falar do cinema português, afirma que sim, que sente julgamentos negativos, “temos um carácter muito especial no nosso cinema, não gosto dessa história de querermos fazer filmes como lá fora. Temos a sorte e o privilégio de ser assim. Porque não aproveitar a nossa identidade, em vez de tentarmos fazer como os outros.”

Em Novembro deste ano está prevista a estreia do filme de João Botelho “A Corte do Norte” adaptado de um romance de Agustina Bessa-Luís, onde faz cinco personagens. “Gosto deste conto, porque descreve uma mulher que quer seguir uma carreira, alguém que tem vontade de qualquer coisa, e consegue de uma maneira muito violenta e graciosa escapar àquilo que a época impõe”.

Acreditar nas escolhas da Ana é deixar que a realidade seja mais poética.

Tiago Manaia

Junho 2008 fanzine Blah, Blah, Blah- Lux Frágil. Fotos: Joana Linda

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